Antes de engravidar
“de verdade”, o casal passa por todo um processo de se imaginar tendo um filho:
como seria ele, se gostaria de tê-lo já ou somente mais tarde, o que se espera
como pais, o que um filho representaria para sua vida. Nem sempre tudo isto é
muito claramente pensado e discutido dentro de si mesmo ou sequer muito
conversado entre o casal. Mas, de qualquer forma, este processo existe e é
muito importante. É deste modo que podemos dizer que o relacionamento entre os
pais e o bebê começa muito antes do nascimento, até mesmo muito antes da
fecundação.
Não seria de forma
alguma um exagero afirmar que o relacionamento pais-filho na realidade começou
na própria infância dos adultos que hoje pensam em ter um filho “de verdade”: a
menininha empinando a barriga e dizendo que tem um neném lá dentro; os meninos
e as meninas brincando de papai e mamãe, brincando de trocar fraldas, de dar
comidinha e banho nas bonecas; depois, adolescentes, olhando com uma ponta de
inveja para as mulheres passeando com seus nenéns e se imaginando na mesma situação;
ou mesmo quando, aborrecidos com restrições que seus pais lhes impõem, juram
para si que quando tiverem seus próprios filhos irão criá-los de maneira
totalmente diferente; e também quando um casal de adolescentes, apaixonado,
fica imaginando como será o filho que gostaria de ter. Nestas inúmeras
situações, ao longo da vida, já se forma potencialmente a ligação com o filho.
Às vezes, o filho
vem no momento que quisemos, planejamos, pensamos. Outras vezes, vem de
surpresa, quando menos esperamos apesar de todas as preocupações cuidadosamente
tomadas para evitar a concepção. Em outros casos, a gente diz que não quer mas
sutilmente sabota a anticoncepção:
esquece de tomar a pílula, de colocar a camisinha-de-vênus, o diafragma
ou erra nos cálculos da tabela. Em outras situações, queremos e não queremos
quase com a mesma intensidade e deixamos a gravidez simplesmente “acontecer”.
Às vezes, a gravidez ocorre fora do contexto homem-mulher estável, aumentando a
indecisão na medida em que a mulher se sente insegura e sozinha para arcar com
a responsabilidade total ou quase total de ter um filho.
A indecisão, em
geral, é tanto maior quanto mais complexa e diversificada na nossa vida; quando
estamos envolvidos em outras atividades ou interesses, quando sentimos que há
outras coisas importantes, quando questionamos se, de fato, o principal
objetivo de nossa existência é a
procriação. A indecisão também aumenta quando nos recusamos a ter um filho
principalmente para atender as pressões sociais e familiares, segundo os quais
todo casal deve ter filhos, mas esperamos sentir quando chega o momento de
acolher, no interior do nosso ser, o milagre da vida.
Um filho pode
representar muitas coisas para nós e são inúmeros os motivos pelos quais
queremos que ele venha. O filho pode trazer a promessa de dar continuidade à
existência dos pais; pode ser uma oportunidade de aprofundar, enriquecer e dar
novos significados ao vinculo do casal, assim como pode trazer o risco de
rompimentos maior desencontro no relacionamento conjugal, especialmente quando
o que se busca é a esperança de solidificar algo já frágil e precário; às
vezes, esperamos que o filho possa realizar, quando crescer, desejo e
aspirações que não conseguimos satisfazer para nós mesmo; ou necessitamos dele
para preencher lacunas de nossa própria vida/ para nos fazer companhia e,
portanto, nos ajudar a evitar o sentimento de solidão; por vezes o sentimos
medo de que o filho venha para nos
atrapalhar, impedir uma série de coisas, atuar como obstáculos a muito de nossos
projetos; às vezes o que o desejamos para que seja o nosso espelho, a nossa
própria imagem ou aquilo que queremos
que ele seja.
Ter um filho pode
representar nosso desejo de seguir os padrões segundo os quais todos casais
precisam, depois de um certo tempo, procriar, entre outras coisas, para que o
homem a mulher possam dar “provas” de que estão funcionando adequadamente. Há
tempos, ter um filho era essencial e indispensável nas famílias nobres ,
tradicionais ou ricas, onde a questão de descendência ou herança ficava em
primeiro plano; ou, por outro lado, especialmente nos meios rurais, o filho trazia vantagem econômica, pois
representava mão-de-obra e aumento da produção. Assim como podemos criar toda uma série de expectativas em relação ao
filho, com freqüência criamos, também, um ideal a respeito de nós mesmos como
pai e como mãe. Por vezes, exigimos demais de nós mesmos, no sentido de não
falhar nem errar para poder criar um filho perfeito; pretendemos que tudo aconteça de maneira impecável: a gravidez maravilhosa, o
parto ideal, o bebê que nunca reclama, a criança obediente e que não dá
problema de espécie alguma. Precisamos ter um filho “perfeito” para nos
valorizarmos como pais; qualquer coisa fora deste esquema é sentida como falha
ou fracasso, como algo que não poderia ter acontecido. Outras vezes,
pretendemos ser totalmente diferentes de nossos próprios pais, e tentamos
compensar com o filho tudo aquilo que sentimos como errado em nossa criação, ou
dar a ele todas aquelas coisas que não recebemos. Por outro lado, às vezes,
achamos que porque a maneira em que fomos educados deu certo teremos de repetir
literalmente tudo o que nossos pais fizeram.
Em suma, de forma
mais ou menos sutil, não admitimos que o filho que está por vir possa ser muito
diferente do que gostaríamos que fosse, não somente deixamos pouco lugar para
sua individualidade ou singularidade como também limitamos nossa criatividade
como pais e a liberdade de sentir o que é melhor ou mais adequado a cada
momento da relação.
Ter
um filho e acompanhar seu crescimento é um processo profundamente criativo,
enriquecedor e renovador, desde que não se abafe este potencial com a busca de
“receitas”, modelos ou ideais a serem seguidos à risca.